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Memória de Minhas Putas Tristes de Gabriel García Márquez: 31 semanas na lista dos mais vendidos

Diálogo entre o tradutor Eric Nepomuceno e o escritor Gabriel García Márquez

ERIC Tem uma hora lá em que você escreve que ficou feliz porque ganhou um caderno de "kalella". O que é isso?

GABO Não, eu não escrevi isso.

ERIC Claro que escreveu, ache aí, na pág. tal...

GABO Peraí. Porra, acho que chamei assim porque achei bonito. Como você 
colocou em português?

ERIC Coloquei "caderno de kalella".

GABO Não quer dizer nada em português?

ERIC Não.

GABO Então tudo bem, porque em castelhano também não quer dizer nada.

19ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. De 9/3 a 19/3, das 10h às 
22h, no Centro de Exposições do Anhembi (av. Olavo Fontoura, 1.209, 
Santana).
Informações: tel. 4689-3100. Ingresso: R$ 10. Idosos e crianças (até 12 
anos) pagam R$ 5.

De Havaianas brancas, jeans e camiseta tipo Hering azul, Eric Nepomuceno 
recebe a reportagem em sua casa de três andares no Jd. Botânico, no Rio. Aos 57 anos, ele acende um cigarro Charm atrás do outro. "Só posso fumar do meu maço porque aí consigo fazer um controle de quanto fumo por dia. Ordens médicas", explica, ajeitando um cinzeiro na mesa da varanda enfeitada por plantas.

Uma visita anterior ao seu escritório, no primeiro andar, com livros e 
jornais amontoados pelo chão e nas estantes, mostram uma flâmula do 
Fluminense, um exemplar de "Notícia de um Seqüestro" e páginas de "O General em seu Labirinto", ambos de Gabriel Gárcia Márquez, com anotações do próprio.

Eric mesmo admite: é mais conhecido como tradutor de Gabo, o colombiano 
Prêmio Nobel de Literatura em 1982, do que como escritor. Ele afirma só 
traduzir os autores de que gosta --geralmente amigos.

"Não sou tradutor, não vivo disso; sou escritor. Cheguei a um ponto da vida 
em que consigo diferenciar o que é bom e o que eu gosto. Às vezes, coincide. Eu faço a escrita alimentícia, aquilo que a gente escreve para comer, e também a escrita por prazer", reconhece. "A essa altura, não tenho mais vontade de traduzir porra nenhuma, mas meus amigos continuam escrevendo..."

Ele e Gabo se conhecem desde 1978, quando se encontraram em Cuba. Eric foi morar no México, lar também do colombiano, e os dois se tornaram íntimos. "Eu e o Gabo sempre bebemos juntos, mas ele nunca fica bêbado. Uma única vez na vida a gente sentou pra beber mesmo, na casa dele. Ele tinha acabado de ganhar o Prêmio Nobel. Então nos reunimos eu, ele e o Jorge Castañeda [escritor mexicano] e assaltamos o depósito secreto de champanhe da mulher dele. Era um estoque que valia o preço de um Nobel!", diverte-se.

O tradutor conta que raramente procurou o autor, apesar da amizade, para 
falar de tradução, e que não conversou com Gabo durante a tradução de 
"Memória de Minhas Putas Tristes" (ed. Record, R$ 24,90, 128 págs.), na 
lista de best-sellers desde o ano passado.

"Ele só me pediu dois favores: faça uma boa tradução e não me consulte para nada. Se você só traduz por afeto, a responsabilidade é muito maior. Eu lia trechos e lembrava de conversas de 15 anos atrás com o Gabo, e ficava vendo como ele remói coisas antigas. O escritor escreve sempre o mesmo livro, como ele mesmo diz."

Pelo mundo Eric é assíduo "freqüentador" da América Latina há 42 anos. A 
jornada começou graças a seu pai, físico, que sempre ia ao Uruguai a 
trabalho. "Quando eu tinha 16 anos, ele me levou a Montevidéu, e eu me 
encantei", lembra. "Tinha morado na Alemanha e na França na infância, mas 
não fazia idéia do que era o nosso continente. Hoje, posso sonhar em 
espanhol, namorar, até brigar."

Morou também na Argentina, onde começou a escrever --seus três primeiros 
livros foram publicados em espanhol. "Para impressionar as moças, eu dizia 
que perseguia a democracia. Mentira, deixa o [Fernando] Gabeira contar essa história. Eu fui para Buenos Aires mesmo, em 1973, atrás do [Astor] Piazzola (músico argentino). Acabei ficando amigo dele."

Para que os amigos brasileiros pudessem ler o que estava descobrindo, 
começou a traduzir os amigos latino-americanos. "Traduzir é um meio de 
compartilhar todo esse mundo", diz. "Mas nunca acho que sou o escritor da 
obra que estou traduzindo. A tradução é uma releitura, embora o texto em 
português seja meu."

A mulher, Marta --que ele chama de "minha namorada há 35 anos e 29 dias"--, já discordou dessa tese. "Muitas vezes, Marta acordava às três da manhã, impressionada com a beleza do 'meu' texto --parecia que era eu quem estava escrevendo, e não o Gabo, que tinha feito uma sinfonia de câmera, algo emocionante."

O único filho do casal, Felipe, 30, documentarista, também ficou encantado 
com o gênio colombiano --mas por motivos, digamos, menos nobres. "Em 1996, eu estava em Madri e encontrei o Felipe, que há oito meses viajava pelo mundo. O Gabo estava em Barcelona e veio nos encontrar. Ele nos levou a um restaurante caríssimo --não é lugar para escritor iniciante--, e comemos um banquete enlouquecedor. Gabo dizia que não existia maior prazer que ver um jovem artista comer bem. Ele se referia ao meu filho, que tinha então 20 e poucos anos."

Há 23 anos de volta ao Brasil, Eric adotou uma rotina bem light: segunda, 
terça e quarta fica no Rio e, na quinta de manhã, sobe para sua casa em 
Petrópolis. Gosta de brincar que é cozinheiro, cita seu hobby --escrever-- e 
diz que não consegue mais ler alguns de seus próprios contos em português. 
"O [Eduardo] Galeano (escritor uruguaio) traduziu alguns que eu gosto mais 
em espanhol do que no original. Talvez porque tenham sido vividos em 
espanhol", acredita.

Mas foi por Gabo que Eric fez algo que nunca tinha feito: ligar para uma 
editora e pedir para traduzir um conto. "Quando o Gabo acabou de escrever 'O Rastro do Teu Sangue na Neve', eu fui fazer uma feijoada na casa dele, e ele estava tristíssimo, ninguém entendia. Dias depois, ele me deu o conto para ler, e era belíssimo. Na hora, quis traduzi-lo."

Eric lembra já ter dito a Gabo que suas obras o emocionaram a ponto de 
inspirá-lo a escrever. "Sabe, aquela conversa de velhos viados", brinca. 
"Sou da geração de 48. Existe uma enorme diferença entre fazer amor e se 
masturbar. Fazendo amor você corre riscos, pode se apaixonar, pode se 
machucar, pode nunca mais voltar ao normal. Qualquer coisa que eu leia e não mexa o chão embaixo do meu pé não valeu a pena ter sido escrito."

Primeiro livro

"Foram quatro, que li com mais ou menos oito anos --'Reinações de 
Narizinho', de Monteiro Lobato; 'Robinson Crusoé', de Daniel Defoe; 'As 
Aventuras de Tom Sawyer', de Mark Twain, e 'As Viagens de Marco Polo', de 
Marco Polo. A partir daí, o mundo virou outro para mim"

Livros favoritos

"Gostaria de ter escrito 'The Great Gatsby', de Scott Fitzgerald, vários 
contos do Hemingway, 'Vidas Secas', do Graciliano Ramos. Mas nunca quis ter escrito um livro do Dostoiévski, porque eu seria mais maluco do que já 
sou..."

Autores favoritos

"Tenho um altar restrito de santos, mas não tenho um 'Deus'. Estão lá Julio 
Cortázar, italianos do pós-guerra, José Cardoso Pires, Saramago"

DIFICULDADES EM GABO

"1. A carpintaria. Ele usa palavras não usuais, mas que qualquer castelhano 
entende; 2. Quando ele escreve mal, repetindo palavras, é porque quer aquele efeito. Eu mantenho; 3. A divisão do tempo narrativo. Você nunca sabe de que tempo ele está falando"

TÉCNICA

"Vou lendo a obra enquanto traduzo. Gosto de ter a mesma surpresa de quando leio. Começo traduzindo à mão, com papel e caneta, e quando pego o ritmo do cara, vou para o computador. Imprimo e faço as correções no papel, com caneta pilot --vermelho significa a primeira sugestão, verde, a segunda, e preto, a que vale. O Gabo também costuma adotar essa técnica das três cores para escrever"

O TRADUTOR...

"Tem de buscar e manter a alma da obra. Defendo que escritores traduzam 
escritores e poetas traduzam poetas, porque o trato com a palavra é outro. 
Você precisa conhecer bem não só o idioma, mas a alma desse idioma"

"Existe uma enorme diferença entre fazer amor e se masturbar. Fazendo amor você corre riscos, pode se apaixonar, pode se machucar, pode nunca mais voltar ao normal. Com livro também é assim: qualquer coisa que eu leia e não mexa o chão embaixo do meu pé não valeu a pena ter sido escrito."